
Resumo do artigo publicado no Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa) de Novembro de 2014
Só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra.
Aristóteles, Política
Se procurarmos no dicionário um primeiro esclarecimento sobre o seu significado da palavra dívida, podemos encontrar a seguinte definição:
Dívida| substantivo feminino
(latimdebita, neutropluraldedebitum, -i, dívida)
1.Coisaquesedeve.
2.Dinheirodevido.
3.[Figurado]Dever(quesecumpreouporcumprir).
4.Ofensa(dequeseesperatirardesforra).
5 Pecado. [1]
De facto, normalmente definimos dívida como “coisa que se deve” ou “dinheiro devido”. Mas a definição apresentada recobre ainda um sentido moral (“dever” e “ofensa”) e um sentido religioso (“pecado”). Esta ideia é tão penetrante que uma parte considerável do nosso discurso habitual sobre a dívida ainda hoje permanece nesse ambiente onde a moral e a religião se confundem [2].
A progressiva passagem histórica da dívida moral para a dívida paga em dinheiro foi responsável por uma transformação de fundo na estrutura da dívida, que passou a ser quantificada, impessoal e transferível. No entanto, essa passagem não lhe retirou o peso moral, como vimos. Pelo contrário, por meio da prática discursiva, a dívida continua inserida num sistema de obrigações morais, como se as relações fossem entre sujeitos morais e não entre indivíduos que se relacionam por meio de coisas.
Como entender os vestígios de um “admirável mundo velho” numa sociedade de mercado contemporânea, que continua a dizer a dívida como “honrar [3] compromissos” ?
Fundamentalmente por duas razões. Por um lado, a moral transporta consigo a ideia de sociabilidadehumana, inclui a ideia de vínculo, sobre a qual se fundam a integração social e as obrigações mútuas. Ligado à moral, o mercado pode restabelecer a aparência dos vínculos sociais, que visam preservar a sociedade no seu conjunto e que, inclusivamente, autorizam o credor a reclamar para si o dever moral de ser reparado. Por outro lado, com essa mesma ligação à moral, o mercado pode afirmar-se pela negação do lucro, como um lugar onde se realizam trocas justas, baseadas no princípio da reciprocidade.
E, assim, a dívida de mercado, onde se inclui a dívida pública, pode beneficiar, para além dos dispositivos político-legais e policiais, de um estatuto moral.
Os grandes anfiteatros da comunicação social, onde ouvimos as mesmas falas sobre a dívida,são lugaressem dissenso, com poucas possibilidades para um discurso que em vez do “dever de honra” o enuncie como “escolha de uma prioridade”, da prioridade pela remuneração de investimentosfinanceiros em dívida pública, da preferência pelo pagamento a credores financeiros.
Dizer e ouvir outras falas, supõe a política, que tem por racionalidade própria o “desentendimento” (Rancière, 1996). Só o homem possui a palavra e o seu “discurso serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” (Aristóteles, 1998, 1253a). Aqueles que habitualmente não têm o direito à palavra, como o devedor, podem reclamar o direito de dizer o “injusto” e de se apropriam da palavra. Esses são os momentos em que sobrevém a "política" na sua expressão mais radical de perturbação do consenso e de reconfiguração do “sensível”. São momentos invulgares, da ordem da raridade. Mas acontecem e urgem.
Referências bibliográficas
Aristóteles (1998). Política. Lisboa: Veja
Graeber, David (2011). Debt: The First 5,000 Years, Brooklyn, New York: Melvillehouse
Rancière, Jacques(1996). O desentendimento. São Paulo: Editora 34
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[1]Dicionário Priberam da Língua Portuguesa URL: http://www.priberam.pt/DLPO/d%C3%ADvida
[2] A ligação histórica entre dívida e moral não é nova. Desde há muitos séculos que a “tábua rasa” mesopotâmica, os jubileus bíblicos e as leis medievais contra a usura no Islão e no Cristianismo evitavam que os devedores caissem na servidão da dívida. O que é novidade é o ambiente de mercado, que criou poderosas instituições (como o FMI) destinadas a proteger não os devedores mas os credores, que decretam – contra toda a lógica económica de mercado em que se inserem – que não discute qualquer “perdão” da dívida, porque “bem, eles têm que pagar”. (Graeber, 2011)89
[3] O “vírus” da honra contagiou as próprias agências de rating, cuja notação para crédito de emissão de longo prazo expressa opiniões relativas à qualidade de crédito em termos claramente morais. Em toda a escala de risco (de AAA a D) émencionado o conceito de “honrar obrigações” (“honour obligations”). A título de exemplo, veja-se a notação de “AAA”: Capacity and commitment to honour obligations not in question under any foreseeable circumstances”. (Itálico nosso) E sucessivamente até “D”.
URL: http://graphics.eiu.com/upload/CRS_Handbook_January_2014.pdf